Desaprender o que já está dado: exercícios de desmodernidade e decolonialidade de ideias e conhecimento, por Bonaventure Soh Bejeng Ndikung

Tradução livre de “Unlearning the Given. Exercises in Demodernity and Decoloniality of Ideas and Knowledge”, de Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, por Vinícius da Silva (sem as notas de rodapé).

viníciux da silva
4 min readAug 26, 2021
Bonaventure Soh Bejeng Ndikung. Photo: © Raisa Galofre

A noção de inventar este mundo

É evidente que as estruturas educacionais dominantes ocidentais e eurocêntricas apoiam intimamente as estruturas de poder racistas e os sistemas de conhecimento, que continuam a medir o progresso de outras culturas em termos de sua “distância” em relação à modernidade ocidental. É sob esta ideologia de progresso que o colonialismo foi imediatamente justificado, considerando certas sociedades ainda não prontas para a autodeterminação e consignando-as à “sala de espera da história”, e isto continua a ser facilitado no rótulo de partes do mundo como “em desenvolvimento”, de acordo com sua capacidade de imitar o “progresso” ocidental.

Cuspidos no mundo, somos imediatamente submetidos a processos de aprendizagem, e lenta — inevitável e irrevogavelmente — moldados por convenções sociais, paradigmas, ideologias, esquemas e por uma inumerável lista de preconceitos adquiridos que logo representam o esqueleto de nosso sistema moral e superego. Continuando em nosso caminho de amadurecimento ao longo de um sistema educacional universal qua ocidental que encontrou ou forçou seu caminho em quase todos os quatro cantos e recantos do globo, nos tornamos sujeitos aprendidos inseridos em um jogo de interpretação de papéis perverso como órgãos políticos sujeitos aos esforços capitalistas e a camisa-de-força do capitalismo.

Ao longo da história — na busca de poder e progresso nas ciências e humanidades, economia e militar, e num esforço para colonizar o espaço e o tempo — essas referências e recursos das civilizações, descobertas e inovações [de países não ocidentais], que abriu o caminho para o que agora se chama um civilização, foram sacrificados, deixados de fora, disputados ou excluídos, e cobertas por outras construções e filosofias de conhecimento que reivindicou ou propagou superioridade racial, humanitária, econômica e histórica de alguns tipos de seres humanos sobre outros. Estas ideologias têm sido os pilares sobre os quais a escravidão, colonialismo, economias neoliberais, antisemitismo, anti-islamismo têm se apoiado e sobre as quais o racismo foi construído. Esses pilares precisam ser desaprendidos.

A noção de “Das Volk”

Na esteira do aumento do racismo na Alemanha, do aumento das taxas de ataques violentos contra estrangeiros, e especialmente refugiados, na Europa como um todo. Em um momento em que experimentamos o renascimento e reconceptualização das tendências nacionalistas na Hungria, Polônia, Dinamarca, França, Itália e Alemanha.

No início de uma era na qual os lares de refugiados são queimados (de acordo com estatísticas de Kein Mensch ist Illegal, em 2015 apenas 1005 incêndios em lares de refugiados foram registrados, em comparação com 199 em 2014, e 69 em 2013), enquanto os cidadãos de uma nação “civilizada” estão por perto impedindo o trabalho dos bombeiros, aplaudindo e aplaudindo e cantando “refugees go home,” [refugiados, vão para casa!] e “Wir Sind das Volk” (nós somos o povo).

Numa era de refúgio em que os refugiados, como em Clausnitz, Alemanha, são trazidos para um novo hospício [asylum home] de ônibus e reunidos por um grupo de aproximadamente 100 neonazistas cantando “Wir sind das Volk”. E, em vez de proteger os refugiados indefesos, a polícia os tirou de lá usando força maciça e os deixou à mercê de um bando de neonazistas?

Para além e apesar de desaprender a construção da raça, a construção do “outro” — que, segundo o discurso popular, deixa sua casa e sua família, caminha através do deserto ou nada através do Mar Mediterrâneo, consegue superar todos os obstáculos violentos da Grécia através da Hungria até a Alemanha, apenas para enfrentar o desprezo e outras formas de ódio, é preciso desaprender também esse conceito perverso de um Volk unilateral.

Apesar da bagagem histórica que a palavra Volk traz consigo, especialmente em relação à Alemanha nazista, é hora de apropriar-se do conceito de Volk e dar-lhe um novo significado, em vez de descartá-lo. Isso é desaprender. O discurso em torno da obra de Hans Haacke, Der Bevolkerung, que ainda está viva em nossas memórias, embora tenha sido uma das obras de arte mais importantes do século XX, tem que ser reconsiderada 16 anos depois. A posição de Haacke dentro de sua história e com a peça no Reichstag é muito legítima, mas com 1,1 milhão de refugiados buscando pastagens mais verdes e seguras na Alemanha, e com 1 de 5 alemães tendo um Migrationsvordergrund, temos que mudar o debate, mudar a narrativa e mudar as perspectivas. O Volk não deveria e NUNCA poderia se dar ao luxo de excluir todas essas pessoas. Todos sabemos que a construção de Das Volk como os nazistas queriam ver era uma pura ficção. NUNCA houve um Deutsche Volk singular, uniforme, coerente, ou homogêneo. Nunca. Esta construção chamada Deutsch é formada pelos bávaros, prussianos, saxões, boêmios, dinamarqueses, etc., e hoje, assim como amanhã, significará sírios, iranianos, ganenses, nigerianos, marroquinos, e mais, incluindo gays e lésbicas, homens e mulheres, os sãos e os insanos.

A ideia de um alemão ariano homogêneo, loiro e de olhos azuis também tem que ser desaprendida. Assim, o desaprendizado não está se esquivando da realidade, mas apontando, desconstruindo e complexificando esses mitos e anseios do estado-nação, da raça suprema e de outras fabulações.

A noção de desaprender

O desaprendizado não é esquecer, não é apagar, cancelar ou queimar. É escrever de forma mais ousada e escrever de novo. É comentar e questionar. É dar novas notas de rodapé a antigas e outras narrativas. É limpar o pó, limpar a grama e rachar o gesso que fica acima do que foi apagado. O desaprender é atirar a moeda ao ar e despertar os fantasmas. O desaprender é olhar no espelho e ver o mundo, em vez de um conceito de universalismo que de fato defende uma hegemonia de conhecimento.

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Written by viníciux da silva

escrevo para que saibam que eu estive aqui

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